Até mesmo na Avé Maria, as entranhas mais íntimas do corpo de uma mulher não escapam ao catecismo. Mal a oração começa, somos logo levados a pensar no bendito fruto do ventre de Maria, essa mulher ideal que, sem pecado original – seja lá o que isso signifique –, lançou ao mundo o nosso salvador. E esse fruto miraculoso, que sempre se espera que um dia brotará também em todas nós. Não sei quanto a vós, mas sempre ficava com o estômago revirado cada vez que aquelas palavras eram repetidas ora aos sábados à tarde na catequese ora no rosário durante o mês de Maio, aquele abençoado mês de Maria e das mães.
E se bem que não éramos autorizadas a participar em coisa alguma na igreja, as venerações ao nosso ser estavam sempre por lá, “salve rainha, mãe de Deus”, “avé maria o senhor é convosco”. Qual ser intocável e divinal! Mas, se não éramos Marias puras, éramos Marias Madalenas.
Durante a minha infância, não havia mais nomes de mulheres imaginárias nas nossas vidas. Ou era a mãe de Jesus com todas as suas estranhas derivações, ou se era a outra indesejada. E na vida real, as mulheres pareciam tomar um segundo plano, sem serem senhoras de história alguma até mesmo aos olhos dos seus próprios filhos. Encontrar figuras exemplares pelas quais as mulheres pudessem se orientar era complicado: ou pura e casta, ou prostituta à espera de redenção. Era uma escolha árdua, e injusta, em papéis limitados, que também sem pedirmos, nos haviam dado gratuitamente, atribuídos pela simples marca da nossa nascença.
E tão forte e inculcada foi esta norma inculcada, tão forte a ideia de tudo isto, que ma passaram para os genes. Ainda estava eu também no ventre da minha mãe, quando já ouvira tais barbaridades. As palavras foram-se entrando pela placenta, enterrando-se na minha carne, fazendo parte constituinte dos meus ossos, e espalhando-se por toda a corrente sanguínea.
Quando nasci, era eu quase como um produto que teria de tudo para me seguir por uma doutrina impingida. Havia toda uma regra de como se ser uma pessoa, fosse homem ou mulher. Bastar-nos-ia guiar pelas leis de Deus e toda a vida decorreria em plena felicidade. Portanto, quando me soltei dessas falsas amarras, foi um enorme escândalo que se abateu pelas ruas de Bravavila.
Mas até que isso se desse, eu regi-me piamente pelas condutas morais que nos impunham a todos. Começava na escola, e acentuava-se na catequese. “Sigam isto, leiam isto, rezam isto”. E eu assim o fazia. Os outros meninos, porém, pareciam querer ignorar todos os ensinamentos, coisa que me enraivecia. Quão difícil era ser-se correto? Porque não ouviam eles aquelas palavras?
Aos meus olhos, a Bela, a Fátima, o Zé e o Luís não tinham qualquer desculpa para os seus comportamentos desvirtuosos. E eu, sempre acometida por um estranho sentido de ordem, tentava, em vão fazê-los ver que o fogo do inferno era extremamente horrível.
Talvez por isso, pelo medo de que me inculcavam, sempre esperei demasiado de todos, principalmente dos papéis que cada um deveria desenrolar nas suas existências. O que era ser filha, mãe, pai, irmão, avó, sogra, neto, o que fosse. Todas estas espécies de condutas, deveriam ser, para mim, um todo perfeito dentro dessas identidades, não podendo jamais extrapolar as suas margens, não fossem as suas almas cair no eterno abismo.
No entanto, quando vi que isso não acontecia eu acabava sempre dececionada. Eventualmente dei-me conta que o problema não residia nos outros, como pensara, mas somente em mim, e sobretudo nesta mania de ver o mundo através de umas lentes de um perfeccionismo obsessivo.
Perante esta estúpida realização, todo o transtorno, personificado em vozes que a minha mente não queria calar, tornou-se ensurdecedor deixando-me extenuada. Foi então, numa tentativa de tentar acalmar essas vozes na minha cabeça, que um certo dia, decidi que melhor do que me conter, seria denunciar as causas das minhas aflições. Seria melhor dar a conhecer todos os habitantes de Bravavila. A Bela, a Fátima, o Zé, o Manel, os seus apelidos insignificantes; os justos, os retos, os pecadores, e todos, sem alguma exceção, todos os que haviam transformado o jardim do Éden num vulgar jardim terrestre.
Começaria primeiramente por delatar aqueles que deveriam seguir-se por uma linha reta e que faziam ver aos demais quais os caminhos corretos desta caminhada, mas que, todavia, eram sempre os primeiros a desviarem-se daquilo que pregavam. Começaria pelos Telles, seguidos dos Moura. Sem ordem especifica, já que ambos caíam no mesmo tipo de farsa.
A verdade estava diante de todos: não havia nenhum sentido de exemplo ou de modelo para estes donos da moral e dos bons costumes. Todos os discursos que defendiam e professavam, careciam de uma real compreensão do sentido das palavras, que eternamente repetidas, tinham perdido seu real sentido dando lugar a tradições incontestadas ao longo do tempo. O que realmente significavam aqueles sons que lhes emanavam das suas bocas? Que imagens apareciam nas cabeças de quem as ouvia? Ninguém sabia ao certo, nem os que as proferiam nem muito menos os pobres coitados que as ouviam.
Mas por alguma força maior e inexplicável à lógica da razão, mal aquelas palavras entravam pelos seus ouvidos dentro, eles logo se tornavam pequenitos. Os seus corpos contorciam-se em vénias desnecessárias, em olhares taciturnos, em gritos calados e em punhos que se queriam cerrar, mas cujas mãos se abriam perante quem os calcava.
E os outros, lá no alto da sua altivez, usavam palavras que se transformavam em ideias perigosas disseminando-as pela aldeia. Palavras que sem que ninguém se apercebesse os colocavam no topo de uma anormal hierarquia.
Alguém era sempre “o senhor”, ou “a senhora”. Enquanto os outros que não se regiam por tal etiqueta eram moços e moças ou rapazes e raparigas que jamais se tornariam homens e mulheres, mesmo já em idade avançada. E com os anos, os nomes de senhores viraram Doutores— mesmo até sem terem um canudo. Mas isso tampouco era relevante.
Na aldeia essa divisão entre os falantes e os ouvintes era palpável. Sentia-se à flor da pele, via-se como se via um muro diante de nós, mas ficava-se exclusivamente por aí, cada um dos dois lados, nunca o saltando. Jamais esta ordem anormal de todas as coisas e do mundo naquele vale era pensada, questionada ou refletida, e muito menos contestada. Jamais se abriam as gargantas para falar da realidade, de como tudo era, ou como poderia ser.
Se o fosse dito, ou pensado, era feito com medo que as paredes tivessem ouvidos. Eram usados termos secretos somente em jeito de desabafo. Lá vinha um ou outro que tentava deitar para fora algo que lhe entalava a garganta dizendo à sorte “…fulano é que tem sorte que o ganhou em bom tempo, já nós, olha, é a vida, para cá andamos”. Diziam-se sempre palavras soltas sem realmente apontar dedos, e resumia-se o pensamento ao peso da cruz que cada um tem de carregar. Tinha-se medo de que as palavras reais fossem espalhadas pela aldeia.
Ali, parece que o vento tinha várias bocas, que corriam em várias direções, e que esse mesmo diz-que-não-disse acabava por ser somente um eco perdido no tempo, tão simultaneamente distante como tão perto. Um eco que perpassava entre os gritos uivantes dos pinheiros, os berros dos homens que espancavam mulheres, os choros gritantes dos filhos tentando impedir a violência que mais tarde reproduziam entre eles na escola atirando pedras entre si e envencilhando os seus bracitos numa luta que os atirava para a gravilha que pavimentava o recreio.
Mas tudo isso, era quase irreal. Os choros, os tiros, os gritos, era tudo calado pela montanha. Tudo ficava algures num coração imaginário da aldeia onde a cacofonia se rapidamente silenciava. Era esse eco perdido que, todavia, permanecia ali, adormecido, algures escondido nas entranhas da aldeia, mas que a cada geração voltava a correr pelas suas ruas, ressurgindo ora mais fraco ora com mais ímpeto. As árvores tremiam e esticavam então os seus braços, e como que estafetas, passavam os recados umas às outras até que chegasse ao coração e mexericos de mulheres viradas Madalenas voltassem novamente a estar na boca de cada um dos aldeões.
Esta sombria magia, era a única explicação que encontro para a falta de autor tanto das palavras como dos atos de tremenda violência. Mas entre tantas palavras levadas pelo vento, de tantos mexericos, de diálogos de conveniência, de tantas vozes incógnitas de homens pançudos e pretensiosamente viris no atro da igreja, de tanta cacofonia de palavras inúteis, nunca tinha passado pela cabeça de alguém a simples e tão relevante palavra “Porquê?”.
Nunca fora dito àquela gente que se poderiam questionar e pedir mais da vida que levavam. Se tivesse pelo menos havido alguém que as sacudisse e lhes abrisse as cabeças, seria tudo tão mais fácil. Alguém, até uma entidade divinal daquelas que os catequistas ensinavam e deixavam as crianças perplexas. Alguém que os fizesse despertar e acordá-los daquela eterna sonolência que se tinha apoderado dos seus corpos gastos, cansados, existentes unicamente para se manobrarem como fantoches sem qualquer livre-arbítrio.
Poderia ser um momento que aconteceria em meros minutos, nem mais do que isso. Mas que diabos! Não havia nenhum profeta que os salvasse e quem de facto aparecesse era logo corrido dali para fora, não só por aqueles que receavam que as suas estruturas de poder desabassem a seus olhos, mas também pelos outros. Estranhamente, o povo aplaudia, consentindo, mostrando-lhes subserviência, como presas apanhadas numa teia venerando a aranha.
Estas espécies de súbditos, arrastavam as suas vidas, nesta estranha desordem das coisas, adiando as suas existências num tempo que ora lhes parecia ser perpétuo, ora de repente deixava de existir de um momento para o outro. O contar dos dias e dos anos prolongavam-se, esqueciam-se, ignoravam-se, para de repente mal se darem conta que se era jovem, afinal, durante pouco tempo. E então, de eterna dormência dos anos, passava-se para uma lamúria de se ser já velho e por a vida lhe ter passado.
A pobre alma, porém, não tinha uma culpa, copiava somente aquilo que o seu pai havia feito. O mesmo que tendo bebido a sua alma até à última gota do garrafão, havia preenchido mais um espaço no novo cemitério da aldeia, que em pouco tempo já se estava a tornar o velho.
Era esse estranho tempo um dos seus principais inimigos. Esse tão singular tempo português, onde os minutos e os segundos existem de forma diferente, um tempo que se dilata e é tão mais complexo que o dos outros povos. Não era o seu o inimigo principal, não! Mas com certeza um forte cúmplice da terra que os comia tanto em mortos como ainda em vida.
Os anos alongavam-se; parecia que se era rei das suas vidas e dos seus relógios. E, se bem que o tempo se esticava, jamais havia tempo para as coisas que julgavam desnecessárias.
O tempo verdadeiro, o útil, era usado para o suporte da vida. Aprendia-se tudo isso fora das paredes da velha escola primária que se julgava apenas um capricho. Havia o tempo certo das plantações, guiando-se Borda de Água para saber quando seriam as fases lunares certeiras; semeava-se quando se tinha de o fazer, colhia-se quando fosse o seu tempo. E claro, haveria sempre o tempo de Deus: reservava-se as manhãs domingueiras para se ir à missa, e os serões das seis da tarde para o terço que se rezava na rádio, ficando ali num ramne-rame até que o sono viesse, o temporário ou o eterno.
As suas diversões, ainda que existentes, estavam sempre ligadas a um santo padroeiro, numa espécie de remissão dos seus pecados. Encontravam-se em dias de festas à noite, sempre no verão quando os dias se tornavam grandes e as noites mais quentes. A banda tocava coisas absurdas, que uns diriam até pecaminosas. Mas ali, só ali, tudo era esquecido e aprovadíssimo.
A maioria, porém, não pegava no seu corpo para o mexer. Havia naqueles corpos uma enorme timidez, um desconforto com a vida. Ficavam sentados nas escadas de pedra granítica, braços cruzados, bocas que bocejavam, e olhos papudos que denunciavam um enorme cansaço. Se tivessem sorte, sentavam-se ao lado de um conhecido da aldeia, conversando sobre nada, entre o barulho ensurdecedor das colunas gigantes que abanavam o chão e as pedras que acavaletadas umas nas outras pareciam cair a cada pancada de som.
Assumia-se ali um papel que parecia predestinado para cada um e vivia-se assim, com ele colado à pele, para toda a vida. Mas claro, os papéis eram vários, tal como eram os locais de nascimento.
Se se nascesse na parte mais a oeste da aldeia, colocar-se-iam duas opções. A primeira: era-se proveniente da casa barroca e granítica, outrora altiva, com telhados envelhecidos, com a tinta, outrora de um branco virginal, já desbotada e um jardim onde várias cameleiras tinham o infortúnio de ver brotar flores apodrecidas.
Era uma agonia ver aquele jardim naquele estado decante! Sobretudo quando havia memória da sua beleza de outrora. Mas, além das flores que faltavam cuidado, era triste ver a óbvia desvalorização do que houvera sido outrora o ex-libris daquele jardim. Falo da estátua da fonte de água, com os seus olhos altivos e misericordiosos, apontando o seu indicador esquerdo para o círculo que a rodeava e onde já só se conseguia vislumbrar aquele olhar condescendente.
As ervas daninhas tinham rodeado o seu pedestal, e a terra parecia tê-la afundado nas suas entranhas, deixando-a meia tombada tornando-a defeituosa. Outras ervas tinham também trepado por ela acima, tolhendo-lhe os movimentos. E onde antigamente havia jorrado água fresca do cântaro que segurava o seu ombro esquerdo, agora só água parada inundava o lugar com um cheiro putrefacto e nauseabundo.
Não distante, as pobres camélias, que ladeavam o corredor de pedra, imploravam também por uma mão caridosa que as fizessem ter a beleza de outrora. Mal o vento soprava a Este ou a chuva caía como se fossem pedras, os botões à espera de florir caiam e enchiam o chão, fazendo uma papa viscosa que não deixava transparecer as pedras do pavimento que dava para a escadaria da grande casa. Também o portão da entrada, outrora azul, estava tão gasto do tempo que mal se distinguia a sua real cor. Era agora apenas um misto de verde e cinzento, onde a modernidade dos carros a gasóleo e os seus tubos de escape o haviam coberto com uma escura fuligem.
Mas se se o conseguisse abrir, entre as enormes folhas que o encravavam, caminhar em direção à porta principal era também outra tarefa árdua. Antes de se alcançar a enorme escadaria, os pés ficavam enlameados com aquela mistela orgânica onde tudo ali se parecia decompor. E mesmo meter o pé nas escadas, agora já sem qualquer corrimão, era uma ousadia; com sorte não se caía de imediato e conseguia-se subir até ao alpendre daquele primeiro andar.
Haveria de ter sido uma boa vida aquela de outrora. Ficar ali horas numa cadeira que balançando alguém o fazia cair no sono enquanto se olhava para o jardim e os terrenos a perder de vista à direita e se dava graças a Deus por se trabalhar honestamente e ser boa gente. Havia realmente de ter sido incrível ter calcado o forte soalho de madeira antes de ter sido comido por todo o tipo de roedores ou cobras que proliferavam agora por aquelas redondezas.
Finalmente, naquele retrato de decadência e grandiosidade desmoronada, a casa, embora reduzida a escombros, ainda ostentava a dignidade de nobreza. Mesmo sem herdeiros visíveis, as portas eram cruzadas com cautela, como se um legado de poder e autoridade permanecesse preso nas próprias estruturas que desabavam. Eram paredes temidas, com a sombra dos Telles pairando sobre as suas ruínas, ecoando o respeito que outrora impusera.
Mais do que as paredes que se desmoronava, as pedras erodidas e as camélias murchas, o nome da família Telles, marcado por dois "ll", ecoava inspirando temor através das gerações. Um medo quase tão profundo quanto aquele alimentado pela figura celestial de que se falava nos sermões de domingo, o tal soberano Deus, desse reino celestial onde um jardim eterno era zelado com devoção.
Mas é certo que quem nascia na zona oriental carregava consigo uma narrativa distinta, alheia a toda essa suposta majestade desse lado obscuro da aldeia. Lá, desse outro lado oposto, entre as vielas mais estreitas e as casas menos imponentes, desenvolvia-se uma história moldada por outros destinos.
A Este havia as Marias, as puras que vislumbravam os seus terrenos até os perderem de vista; do outro as Madalenas, e os malditos frutos daqueles ventres odiosos, onde as histórias eram outras.
Esta história faz parte de um projeto mais amplo que tenho desenvolvido e partilhado aqui no Substack. No entanto, irei também publicar outros tipos de artigos que não estarão sempre ligados a esta história específica. Para diferenciar, cada subtítulo indicará se faz parte ou não do seguimento principal desta história
Olá, chamo-me Araci e sou uma escritora portuguesa.
Gosto de escrever sobre o meu país, Portugal, e sobre a minha vida neste canto do mundo. Mas também gosto de política, economia , vida, religião, feminismo. Tenho em plano escrever uma longa história, que hoje, começa assim.
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